04/11/2009

Conto do mês - Novembro 2009

Ponto… ou vírgula?

Era um daqueles dias cinzentos, tristes, prontos a dar o lugar à noite. E era apenas mais um dia na vida dele. Ultimamente eram assim todos os seus dias: iguaizinhos uns aos outros, sem rumo, a esvaírem-se, segundo a segundo, numa ampulheta invisível para os outros, mas cruelmente presente para os seus olhos tristes como os dias cinzentos como aquele.
Sentado no cais, imóvel, nem se apercebia (ou ignorava-as ostensivamente) das partidas e chegadas do barco que fazia a ligação entre as duas ilhas…
Há muito que a sua vida estava num impasse. Na ilha, ninguém sabia nada do seu passado. Sempre fora um homem de poucas falas. Fosse qual fosse o “mal” que o afectava, há longo tempo que não falava com ninguém e só era notado ali no cais, sentado, a olhar o mar. Ou talvez a olhar apenas na direcção do mar sem se dar conta da sua existência, do movimento desordenado das ondas ou de uma ou duas gaivotas mais aventureiras que planavam sobre o rochedo situado a alguns metros do cais.
Depois de entrar no barco, fiquei a vê-lo no cais, sentado, com aquele olhar perdido ou talvez ancorado em horizontes desconhecidos. Progressivamente encolhido pela distância do barco a afastar-se, por fim, não passava de um ponto negro perdido no branco da parede da sala de espera. Mergulhei nos meus pensamentos e esqueci-o.
Contaram-me mais tarde que aquele dia cinzento tivera um desfecho diferente para o homem sentado no cais. Pouco tempo depois de ter deixado de o ver, no barco, a página em branco que era parede da sala de espera ficou completamente em branco. O ponto negro, que era o homem sentado no cais, a olhar não se sabe bem para onde, escorrera tranquilamente e mergulhara nas águas agitadas e bordadas a espuma. Quem assistiu ao estranho acontecimento garante que não se tratou de um acto tresloucado mas apenas de um movimento sereno determinado por uma força invisível. Consta até que o ponto, antes de entrar nas águas do Atlântico, já era uma vírgula e transmitia a quem a via uma inexplicável sensação de alegria.
Quando passeio pelo cais, revivo aquela situação como se lá tivesse estado. Ontem mesmo, ao fim da tarde, num dia como aquele (cinzento, triste e pronto a dar-se à noite), avistei um golfinho que rondava o cais. Saltou para fora da água, olhou-me nos olhos e voltou a mergulhar, perdendo-se no fundo do oceano. E tenho quase a certeza que aqueles eram os olhos do homem que costumava estar sentado no cais, imóvel.
De forma inexplicável, dei por mim a sorrir, a olhar o mar e com uma vontade irresistível de me sentar naquele banco, agora vazio, onde o homem ficava todos os dias, quando o dia estava prestes a deixar de o ser e a noite vinha a caminho…

Prof. António Pereira
(professor.ap@gmail.com)

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