11/11/2011

CONTO DO MÊS

Porque na Ferreira não queremos que te/lhe falte nada!

Insatisfações…

        Ali estava, de olhos fechados, deitado de costas, sobre uma enorme toalha vermelha.               
       O som rouco das ondas abafava os gritos estridentes das gaivotas que passavam. O sol descia a pique do azul seco do céu e, implacável, impregnava-se em tudo o que estivesse ao alcance dos seus dedos escaldantes.               
        Indiferente a tudo, o homem não se revia na vida perfeita que tinha: uma esposa linda e amantíssima e dois filhos (“Um casalinho!”, diziam os avós) que seriam o sonho de qualquer pai ou mãe.               
        Quadro superior numa empresa prestigiada, tinha o conforto que a vida só dá aos privilegiados. Nada podia explicar o negrume que se lhe instalara na alma, dia a dia mais intenso, todos os dias mais irreversível.              
        Era óbvia a dificuldade com que respirava. Cada sopro de ar morno que lhe saía penosamente das narinas dilatadas e febris arrastava consigo, como uma enchurrada incontrolável, o que ainda lhe restava de uma muito ténue vontade de viver…               
        Só pensava no nada que era a sua vida, cultivando obsessivamente a mesma fantasia: diluir-se, lenta mas inexoravelmente, na atmosfera até se apagar completamente, sem deixar vestígios da sua existência. Que bom seria sair da vida de mansinho, quase distraidamente, sem ninguém se aperceber, apagado da realidade por uma borracha invisível!               
        No dia seguinte apanhou o comboio em Campolide. Nada o distinguia dos outros passageiros. Quando o comboio começou a atravessar a ponte, os seus olhos fixaram-se nas mensagens do visor luminoso, ao fundo da carruagem. Primeiro, “Destino: desconhecido”; a seguir, “00h00 horas. Temperatura exterior: indeterminada”; finalmente, “Próxima paragem: sem paragens”.         Excluindo o facto de ser efetivamente meia-noite, tudo o resto era muito estranho para aquele dia de um mês de setembro anormalmente quente.         Ao entrar no túnel, mesmo antes de chegar à estação do Pragal, sentiu o trepidar ruidoso da carruagem e um aumento inexplicável e vertiginoso aumento da velocidade. Foi atirado violentamente contra o banco, sentindo uma dor insuportável nos ouvidos. Um após outro, sentiu, impávido, todos os órgãos a soltarem-se dentro corpo. Nem dor, nem gritos, nem gemidos. Nada. Apenas uma enorme sensação de alívio…               
       Perdeu a noção do espaço e do tempo mesmo antes se desintegrar, transformando-se em milhões de ínfimas partículas, disparadas, como uma poeira informe, em direção ao firmamento estrelado pelo buraco deixado pela janela da carruagem.               
        O dia nasceu particularmente bonito. O sol assumiu com determinação o seu papel de iluminador e começou a acariciar mornamente o extenso areal…        Um bago de areia, enrolado nas ondas, atirado impiedosamente em todas as direções, sobrevivia graças ao sonho que lhe alimentava a alma: ser um homem, deitado de costas, sobre uma enorme toalha vermelha…

Prof. António Pereira

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