Livro do mês de Fevereiro: Alma de Manuel Alegre
Parabéns aos aurores da crónica vencedora:
Alma, de Manuel Alegre
“Ao longo de 174 páginas, Manuel Alegre faz desfilar diante dos nossos olhos as recordações de infância de um menino chamado Duarte de Faria. Os sons e costumes da aldeia, os jogos de futebol nas tardes de Domingo, a política, a família, a escola, as brincadeiras, as descobertas próprias da idade. O dia a dia na pacata aldeia de Alma, em plena época de Estado Novo.” Isabel Maia
Durante o ato de ler, o excesso de pormenores, salvo raras exceções, encaminha a leitura a tornar-se um procedimento maçudo e conduziria, consequentemente, à desmotivação do leitor. No entanto, de forma incrivelmente espantosa, Manuel Alegre corta, com uma espécie de tesoura inalcançável ao toque, esses momentos aborrecidos de descrições rigorosas, introduzindo passagens mais cómicas e que encorajam a travessia das quase duas centenas de páginas que constituem Alma. Impressiona a serenidade com que o autor relata acontecimentos respeitantes à sua própria vida, relativamente à qual seria de esperar que este possuísse certos constrangimentos. Ao invés, o autor partilha essas vivências de forma descontraída, sem hesitação.
A palavra que confere título à obra é tão suave quanto a leitura da mesma. As palavras dão a sensação que estão untadas com qualquer óleo que as faz escorregar pelos nossos olhos. É, então, importante avisar o leitor que é um risco de grande magnitude ler Alma, que é tal qual as tão míticas plantas carnívoras que, quando o invasor tenta escapar por entre as suas pétalas, aparentemente inofensivas, o prendem de forma furiosa, e é assim que à combinação de palavras se submete o leitor que bem tenta controlar, bem tenta cerrar o livro, mas acontece que a obra não o permite sem antes deliciar quem o tenta encerrar com mais umas palavrinhas, como se estivesse a implorar para que não a deixem encostada numa qualquer prateleira coberta de pó, como se estivesse a tentar conquistar o leitor, e a pedir: lê-me.
As palavras de Isabel Maia exprimem o conteúdo do livro que é, além de um romance autobiográfico, um importante documento histórico que retrata a realidade do Estado Novo, as dificuldades inerentes à vivência na década de 40. Todos os conflitos de que ouvimos ocasionalmente falar e que nos custa a crer que assim foram, que se fizeram guerras, que sangue inocente foi derramado, estão aqui documentados, sob uma perspetiva bastante diferente da que nos é apresentada pelos manuais de história, pelos museus. De entre os acontecimentos lembrados, destacam-se a oposição entre os republicanos e os monárquicos, a guerra civil espanhola, a segunda guerra mundial e as vitórias dos aliados. Ganham enorme relevo, durante a narração, a crença cega na religião, o medo da morte e os terrores supersticiosos que amedrontavam a população daqueles tempos.
Manuel Alegre transmite as suas vivências pela voz de Duarte de Faria, e é comovente a forma como o autor recorda de forma orgulhosa e nostálgica a família e os momentos passados com o seu pai no campo de futebol: “Não sei o que lhes disse naquele dia mas aos dez minutos da segunda parte, já o beira-rio tinha reduzido para dois a três. Lembro-me perfeitamente do segundo golo: Armandinho foi marcar um corner, meu pai deu umas instruções e Almiro veio de trás e marcou.”
A qualquer pessoa marcam aspetos da infância, cheiros, sons, vozes e imagens, aspetos esses que, quando nos são avivados na memória, oh, que sabor esse! A Manuel Alegre, ou melhor, Duarte de Faria, marcou-o A Loja - “Mas aquela era a Loja, com maiúscula. (…) Era a maior loja da vila, com um balcão retangular, como o das grandes lojas dos filmes ingleses e americanos, com as suas fazendas desdobradas em cima do balcão, as cadeiras altas onde se sentavam o Ti Florêncio, seu filho Artur e os empregados mais antigos. Cheirava a lã, a fazenda e a serradura espalhada pelo chão nos dias de chuva.”- e, como a um qualquer adolescente, marcaram-no as primeiras experiências da sexualidade que o autor, sem quaisquer pudores, descreve ao pormenor: “Às vezes levantavam as saias e mostravam-me o que tinham entre as pernas. Não usavam calcinhas e via-se uma mancha de pelos pretos. Pint......., diziam elas. Depois metiam as mãos na vagina: c…, diziam.”
Aconselhamos vigorosamente a leitura deste livro, pois é um texto de memórias com alma. E, como todos nós temos um passado, todos os leitores se sentirão integrados no livro. Este livro é dinâmico, atraente e desperta uma variedade de sentimentos o que irá, sem dúvida, cativar o leitor, não o deixando guardar o livro na estante sem o ler até ao fim.
10ºE Grupo IV Andreia Dias, Carla Coutinho, Inês Miranda e Inês Barata
Postado por Carlos Cotter